Quando há mais de um século Marcel Duchamp inverteu um urinol e resolveu chamar-lhe «Fonte», assim dessacralizando a prática artística e inaugurando oficialmente a arte contemporânea, não estava a impor nada a ninguém: estava pelo contrário a sugerir que tudo depende do contexto e que se pode e deve tentar sempre olhar as coisas de uma perspectiva diferente, na arte como na vida. [Foi a teoria da relatividade a chegar à arte logo após Einstein a ter apresentado à física; e talvez haja também nisto uma dinâmica «gravitacional» relativa.]
Ele e tantos outros dadaístas e modernistas afins, como depois os surrealistas, entre muita gente altissimamente recomendável, entretiveram-se a partir daí a «épater le bourgeois» - incitar ao escândalo, fazer terrorismo sobre o meio artístico tradicional e académico, provocar pateadas e pancadaria em espectáculos culturais, deitar a língua de fora à senhora vizinha, pintar um bigode à Mona Lisa, pôr tudo em causa, em suma.
Isto, que foi importante, que foi aliás fundamental para toda a arte e toda a cultura do séc.XX, foi uma coisa.
Outra coisa é o enxame de pseudo-artistas contemporâneos e «agentes» culturais diversos que mais de um século atrasados, e sem pingo de génio ou graça, fazem de conta que descobriram a pólvora, imitando à exaustão um modelo já mais do que exaurido, monotonamente, repetitivamente, usando e abusando das mesmas fórmulas hoje canónicas e guindadas a posição de poder - tal qual a arte antes dita «académica», porque agora a mais académica das artes é esta contemporânea. Hoje, se um «artista» quiser pendurar um presunto num cabide e assim ocupar um salão, temos «instalação» e temos logo um «curador» disponibilizando um museu com imenso palavreado de discurso «meta-artístico», questionando-se metafisicamente sobre aquilo que o presunto estará ali a fazer, decerto algo de muito diferente do que faria no talho, e o profundo significado transcendente e respectivas implicações de estar mais encostado à parede ou à porta.
Parece difícil estabelecer o que seja mais espantoso: se este engodo em si, se tão pouca gente parar para dar conta dos flagrantes paradoxos que ele ainda por cima encerra.
Em primeiro lugar, a arte de vanguarda precisa de afrontar o sistema e só nessa circunstância existe e sobrevive. Se o sistema a domestica, torna-se a coisa mais doméstica que há. Não há volta a dar, é (ou deveria ser) uma evidência.
Em segundo lugar, até para «épater le bourgeois» é preciso estar do lado de fora. Só espanta aquilo que é estranho, que vem de fora. Não há espanto institucionalizado. Já para não dizer que nesta altura do campeonato, mais de um século e duas guerras mundiais depois, pouca gente se espantará com o que quer que seja.
Entre a arte anteriormente académica - como por exemplo, digamos, um Museu Romântico / Quinta da Macieirinha - e este academismo da «arte contemporânea», a anterior, apesar de entediante, sempre tinha pelo menos duas vantagens:
- a primeira é que representava um modelo fiel e não estava ali para enganar ninguém com embustes e artifícios
- a segunda é que a sua posição de poder não incomodava vivalma, ao contrário dos padrões tão impositivos de tanta «arte contemporânea»; só isso explicando que estes mesmos Nuno Faria e respectiva equipa do "Museu da Cidade" resolvam, por exemplo, continuar um ano depois a matraquear os ouvidos de expositores e visitantes da Feira do Livro com «ambientes sonoros» disparatados em irritantes «loops» que garantidamente não usarão em casa deles, mesmo sabendo que estão a desagradar e até a incomodar. E nem agora, com a população da cidade e do país a pronunciar-se em peso contra isto, reconsideram. Chegando a uma posição de poder, a esta «arte contemporânea» acontece-lhe algo tão típico: torna-se prepotente. Mas, poder por poder, mais valia dá-lo directamente aos artistas dignos desse nome - só que aqueles que o são dificilmente o aceitariam. Em contrapartida, assegurá-lo a estes «curadores» e outros artistas frustrados falhos de génio e criatividade que tão facilmente o procuram e aceitam tem sempre a mesma consequência: levar aos salões os amigos, também eles quase quase sempre propósitos fracassados de artistas. Mais parecem crianças que querem apenas chamar a atenção; mas crianças muito mimadas e desinteressantes, lamentamos.
Em todo o caso, os museus da cidade, tal como a feira do livro da cidade, não deveriam estar entregues a crianças que precisam de chamar a atenção. Não deveriam ser «territórios» de «experimentação»: plasticina mais que plástica. Também isto deveria parecer uma evidência.
Modernizar e dar vida ao lado mais convencional dos museus? Sim, senhor. Trazer arte e criatividade mais «alternativas» ao lado mais comercial da feira? Sim, senhor. Isso era uma coisa (aliás bastante conseguida nas duas primeiras edições, 2014 e 2015, da nova Feira do Livro). Outra é esta palermice.