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Raul Brandão, por Aquilino

Estou a vê-lo a subir o Chiado a passos lentos, dobrado e ficando ainda um homem alto, os olhos a azulejar em torno, um bom sorriso nos lábios, pronto a dar-se. Ia reunir-se à sua roda, na Livraria Bertrand ou no Café. Raul Brandão prezava o convívio dos amigos, por quem gostava de ser acarinhado, mas não provocava a blandícia. Com uma bonomia de velho capitão de porto, gozando os ócios e a reforma, sentava-se na Brasileira, geralmente ao fundo se havia lugar. O seu cristianismo era uma espécie de cancela franca, por onde passava cordialmente gente de toda a moral e condição, o rapaz de valor e o patarata, o patife e o honesto,o grego e o troiano. No âmago da consciência diferenciava como ninguém, e ia registando.
À sua mesa quem pagava era invariavelmente ele, como se fosse não uma devoção, mas uma prerrogativa. Era o troco em miúdos à admiração e vénia que lhe tributavam. Não figurava também de senhor da Nespereira?
De modo geral prestava orelha deferente a cortesãos e estafadores. Era homem que sabia ouvir. Quando intervinha, fazia-o com pausa, entrecortadamente. Dir-se-ia que andava longe. Talvez andasse, sim, pelos cemitérios, pela noite escura a arrebanhar fantasmas que haviam de representar no seu guinhol, prodigiosamente evocador. (...)
 
Não era rancoroso, e eu permitia-me nos meus verdores ser impertinente com ele. Por vezes, e era injustiça, punha-lhe na cabeça o carapuço do seu próprio Gabiru. Ele ria, tolerantíssimo, duma tolerância filosófica sem despeitos nem reservas. Era integralmente um santo homem, convencido da fatuidade do bem e do mal, de quanto o esforço humano é vão, e de que tudo à superfície da terra, a começar pela ciência e a arte, é uma espuma falaz. No entanto, a sua posição, sob o ponto de vista de cidadania, era a de combatente duma barricada. Desde que o conheci, e foi durante uma década de anos, não dei conta que se arredasse do parapeito. Batia-se pelos desgraçados, pelos humildes, pelos tristes, pelos que tinham fome e sede de sol, de simpatia ou de pão, simbolizados na mulher da esfrega, na Candidinha malfadada; batia-se e sofria pelos próprios maus, vítimas de uma sociedade iníqua e duma nefasta sina sem remissão. A sua gesta, no livro, na palestra, era a dum revoltado.
A obra de Raul Brandão é altivamente eloquente no que tem de social, por conseguinte de humano. A dor foi sempre o centro planetário da sua arte. Mas não a dor metafísica, pela qual se é fácil cavaleiro, mas a dor individuada, que nos torna solidários e responsáveis com o próximo. A par com esta feição toda evangélica, em literatura era um artista do impressionismo.
Os Pescadores e Portugal Pequenino são duas obras, irroradas de todas as tintas da Primavera e da candura da neve, do melhor que pode ostentar a língua.



[«Camões, Camilo, Eça e Alguns Mais». Percebe-se bem esta de "artista do impressionismo" se Aquilino nunca tiver passado os olhos pelo Humus...]

"Il faut être absolument moderne"

No ano em que se comemoraram 150 do nascimento de Raul Brandão, muito se falou da sua literatura como um modernismo alternativo ao canónico que cá teve epicentro em Lisboa - e que fatalmente ficaria na sombra devido a Fernando Pessoa. Este ponto de vista é curioso pelo que tem de curioso no que está certo, no que está errado e no assim-assim.

Primeiro, note-se que esta «sombra» é a do grande público e da Academia (mas já não da crítica). Porque, de resto, até se pode traçar um evidente paralelo entre a influência mais ou menos assumida que estes dois senhores exerceram respectivamente sobre a prosa e a poesia portuguesas ao longo do século passado.
Se não houve quase nenhum dos nossos grandes poetas que lhe foram posteriores a negar o estro de Pessoa, também não houve um só dos principais prosadores que não afirmasse de forma explícita a dívida a Brandão - Aquilino (que com ele fundou a Seara Nova e lhe terá facilitado a edição na Bertrand frequentada por ambos), Ferreira de Castro, Torga (veja-se o que Os Bichos herdam do Portugal Pequenino...), Vergílio Ferreira e Saramago, já para nem falar nos devotos Nemésio, Gomes Ferreira e Cardoso Pires, nem em senhoras como Agustina (que apesar de tudo deve ainda mais a Camilo e a Pascoaes, de quem parece um sobre-valorizado sub-produto) e a tão outra e inclassificável Gabriela Llansol, segunda grande aventura nas bordas da prosa portuguesa desde... Raul Brandão, pois. Ninguém, ninguém escapa.
E nisso, goste-se mais ou menos, não há discussão: Pessoa (não gosto muito) e Brandão (gosto de um modo imenso) são incomparavelmente os dois nomes de maior influência na literatura portuguesa do séc.XX e ainda talvez no que se leva até agora do XXI, apesar do Super-Herberto e de Saramago.


Segundo, este par serve de exemplo para demonstrar que, mais do que a Academia, o que mormente concorre para firmar o canône e estabelecer a fortuna da opera é apenas o investimento, desde o estadual (público) ao privado (editorial etc.). Sabe-se, embora pouco se fale, como Pessoa deve a fama ao «lobbying» que começou com António Ferro, em pleno Estado Novo, e continuou e continua com milhões de contos e euros - desde logo do erário público - após o 25 de Abril; promoção no Brasil cedo apoiada desde Casais Monteiro e Cecília Meireles. Isto quando o poeta era pouco mais do que desconhecido e Pascoaes, por exemplo, traduzido em várias línguas no estrangeiro e lá apontado para o Nobel - mas cá proscrito pelo Estado Novo e pela ortodoxia católica e vigiado pela PIDE por outras razões.
Claro: Pessoa vingou porque, além do mérito versejador, se presta ao gosto quase sempre fácil, popular, às vezes quase kitsch, parecendo nesse domínio imbatível e universal. Vingou principalmente onde não é moderno. Mas se também parece difícil pôr o leitor comum a mergulhar maravilhado no Húmus, parece facílimo pô-lo a gostar do nada moderno mas espantoso lado «solar» brandoniano, sobretudo esse tríptico extraordinário formado por Os Pescadores, As Ilhas Desconhecidas e Portugal Pequenino. Basta que os leia.


Terceiro, e quanto ao modernismo: "a angústia da influência". Fernando Pessoa, que de tudo lia e de tudo falava, nunca se referiu a Raul Brandão. Como não parece possível que o não lesse, tratando-se de alguém que publicava na Renascença e na Bertrand, fácil será perceber-lhe o silêncio. O Húmus é o livro mais influente de toda a prosa portuguesa do séc.XX - e, conforme já muita gente notou (por exemplo: os pessoanos Prado Coelho), influenciou desde logo o Livro do Desassossego.
Se na poesia, de um pré-moderno Cesário a um finissecular Pessanha, as influências de Pessoa são óbvias e assumidas, na prosa não. O que não significa que não estejam lá. Sobretudo neste caso, pode e deve falar-se de algo mais do que simples «influência»...
Mais: o Livro do Desassossego é escrito já bastante depois de Os Cadernos de Malte Laurids Brigge e pouco antes (na melhor das hipóteses) de As Ondas. O Humus sai pouco depois do primeiro e muito antes do segundo. Sublinhe-se este ponto, imaginando como seria se a Europa e o Mundo também o conhecessem...
 
       

Natal

Natal.
 
Está um dia fosco de neblina incerta e tristeza. Para lá as árvores despidas não bolem. A vida parou. As nuvens andam a esta hora a rastro pelas encostas pedregosas dos montes. Não se ouve um grito. Tudo na natureza se concentra e sonha. Há no entanto um grande rio envolto que nunca cessa de correr…
Longe pelos caminhos, através de pinheirais cismáticos e calados, vão velhinhas tristes, de saia pelos ombros, para consoar nessa noite com os filhos. Andam trôpegas léguas e léguas. As suas mãos calosas, as caras enrugadas, onde as lágrimas abriram sulcos, os olhos tristes, contam o que elas têm passado na vida, dias sem pão, suor de aflições, desamparos, maus tratos…
 
Os cavadores deixaram os arados mortos nos campos, que a chuva alaga. Que tudo repouse. O vinho de hoje conforta, como as lágrimas choradas pelas nossas desgraças, o lume de hoje aquece como o amor de nossas mães.
Nos soutos, sob a chuva que cai mansa e continua, andam pobres que não têm lenha, a arrancar uma raiz esquecida, para se aquecerem. Deus os tenha na sua mão de pai. Partem, chegam, vêm muito longe, para verem os seus meninos, matando saudades. Quase não comem e sustentam filhos, sustentam netos. Os velhos, que tem atrás de si uma vida de martírio e fomes, dizem:
– É hoje o maior dia do ano…



[Raul Brandão, Natal dos Pobres]

Raul Brandão — Os Pescadores

Livrarias Aillaud e Bertrand, 1924. In-8º de 326 págs. Br.
 
Um dos livros principais do escritor portuense, com capítulos dedicados a vários pontos da nossa costa marítima, de Norte (sobretudo) a Sul, e aos hábitos, costumes e tipos das respectivas comunidades de pescadores – de que constitui o mais belo monumento literário conhecido.
Terceira de várias edições saídas num mesmo ano, prova de leitura inusual para um livro português desse tempo.
 
Exemplar em brochura, bem conservado, apesar de algumas marcas (uma delas de perfuração) na capa.
 
15€

Raul Brandão ― Memórias I

Memórias (1.º Volume) (2.ª edição – 2º milhar)

Edição da «Renascença Portuguesa», Pôrto. (1919). In-8º de 332, [4] págs. Br.
 
O exemplar pertenceu a Abel Brandão, de quem tem repetida a assinatura no anterrosto e no rosto.
 
15€

Raul Brandão ― Memórias II

Memórias (Volume II / 1.ª edição)

Livrarias Aillaud & Bertrand / Paris-Lisboa. (MCMXXV). In-8º de 296, [2] págs. Br.
 
Exemplar com ligeiros rasgões e falhas de papel na capa; de resto, sem qualquer defeito significativo a assinalar.
Pertenceu também a Abel Brandão, de quem ostenta a assinatura, como de costume, ao alto da folha de rosto.
 
17€

Raul Brandão ― Vale de Josafat (III Volume de Memórias)

Seara Nova, 1933. In-8º de 286, [2] págs. Br.

Terceiro e último volume das Memorias, este de publicação já póstuma, e geralmente apontado como o melhor dos três; mesmo que Raul Brandão não tenha chegado a retocá-lo.

Exemplar francamente bom, salvo ligeiro desgaste da capa e um discreto carimbo de assinatura na folha de guarda.
 
28€

Vida Devota (V)

Valeu-me a pena viver? Fui feliz, fui feliz no meu canto, longe da papelada ignóbil. Muitas vezes desejei, confesso-o, a agitação dos traficantes e os seus automóveis, dos políticos e a sua balbúrdia - mas logo me refugiava no meu buraco a sonhar. Agora vou morrer - e eles vão morrer.
 A diferença é que eles levam um caixão mais rico, mas eu talvez me aproxime mais de Deus. O que invejei - o que invejo profundamente são os que podem ainda trabalhar por muitos anos; são os que começam agora uma longa obra e têm diante de si muito tempo para a concluir. Invejo os que se deitam cismando nos seus livros e se levantam pensando com obstinação nos seus livros.


[Raul Brandão, Memorias - Vale de Josafat]

Otto Kaus — Dostoïevski et son Destin

Dostoïevski et son Destin (traduit de l’allemand par Georges Cazenave)

Les Éditions Rieder / L’Églantine, MCMXXXI. In-8º de 282, [2] págs. Cart.

Primeira edição francesa.

Exemplar com cartonagem aparentemente «livre» que recuperou tiras da capa original.
 
8€

Dostoievski ― Obras Completas

Editora Arcádia Limitada (1964). 10 vols. in-8º gr. Enc.

Edição monumental abrangendo toda a produção conhecida do autor até à época; sendo os dois últimos volumes dedicados aos raramente traduzidos, e em Portugal então ainda inéditos, «Cadernos de um Escritor».
Todos os volumes encadernados pelo editor e revestidos invariavelmente da mesma sobrecapa em papel.
 
100€

Dostoievski ― Crime e Castigo

Crime e Castigo (Versão de Maria Franco e Cabral do Nascimento / 3.ª edição)

Portugália Editora, Lisboa. (1966). In-8º gr. de 513, [5] págs. Br.

Edição portuguesa publicada na colecção «Os Romances Universais».

Exemplar desvalorizado por um rasgão na capa.

10€

Dostoievski ― Les Frères Karamazov

Les Frères Karamazov (traduit et adapté par E. Halpérine-Kaminsky et Ch. Morice/Avec un portrait de Th. Dostoievsky)

Paris: Librairie Plon/E. Plon, Nourrit et Cie, Imprimeurs-Éditeurs. [S/d - 1888]. 2 tomos in-8º de [8], 291, [3] e [4], 332, [2] págs. Enc.

Primeira edição francesa, publicada sete anos após a original russa.

Ambos os volumes revestidos de encadernação relativamente modesta em percalina granulada feita pela Livraria Moraes para o Gabinete Francês, falha, como era então habitual, da capa primitiva de cada um.
 
40€

Dostoievski ― Os Irmãos Karamazov

Os Irmãos Karamazov (Tradução de Maria Franco / Introdução de Eliseo Vivas)

Estúdios Cor. 2 vols. in-8º de XXXI, [I], 385, [7] e 426, [10] págs. Br.

Capa de Luís Filipe Abreu. O texto introdutório do ensaísta colombiano é bastante extenso.

Ambos os volumes com assinatura de propriedade, o primeiro com dedicatória de oferta que suponho alheia a editora e tradutora.

15€

Dostoievski — Um clube da má-língua

Porto, Livraria Civilização Editora, 1936. In-12º de 237, [3] págs. Enc.

Uma das primeiras edições portuguesas do livro (com certeza a primeira em formato popular), publicada na conhecida «Colecção Civilização».

Encadernação da época, vulgar mas conservando a capa de brochura.
 
5€

Tolstoi — A Morte de Ivan Ilich

A Morte de Ivan Ilich, por (...) / tradução de Adolfo Casais Monteiro

Editorial «Inquérito», L.da, Lisboa. (1940). In-8º de 86, [2] págs. Br.

Não estando indicado, é de supor que Casais Monteiro tenha basado esta sua tradução nalguma francesa.

Exemplar regularmente manchado de acidez ao longo do volume.

5€

Tolstoi — Senhor e Servo

Senhor e Servo, por Leão Tolstoi / tradução de José Marinho ilustrada por M. Ribeiro de Pavia

Inquérito, Lisboa. [S/d]. In-8º de 118, [2] págs. Br.

Edição publicada na bonita colecção «Antologia dos Amigos do Livro».

Exemplar desvalorizado por uma pequena citação bastante feminista manuscrita a tinta na folha preliminar.
 
5€

Gorki ― Tempestade sobre a Cidade

Arcádia. (Lisboa. 1963). In-8º de 184, [2] págs. Br.

Edição publicada na «Biblioteca Arcádia de Bolso», com tradução indirecta a partir de uma versão francesa e capa de Sebastião Rodrigues.

Exemplar marcado por alguma acidez ao longo de todo o volume.

5€

Gorki ― A Mãe

Editorial Início. (1970). In-8º gr. de 468, [4] págs. Br.

Volume inaugural da série das «obras completas», reproduzindo a editada pela Academia das Ciências da antiga U.R.S.S., inclui um prefácio do editor português e um retrato de Gorki nas folhas preliminares. O romance, um dos primeiros e mais célebres do autor, fôra escrito ainda durante o período do exílio americano, em 1906.

Exemplar em bom estado geral, mas com algum desgaste na capa.

10€

Gorki ― A Mãe

o oiro do dia / porto. [S/d]. In-8º de 354, [6] págs. Br.

Tradução de Egito Gonçalves; com o habitual arranjo gráfico de Armando Alves. Reproduz um retrato do escritor numa folha destacada preliminar.

O exemplar apresenta ligeiro desgaste também na capa.
 
8€