No ano em que se comemoraram 150 do nascimento de Raul Brandão, muito se falou da sua literatura como um modernismo alternativo ao canónico que cá teve epicentro em Lisboa - e que fatalmente ficaria na sombra devido a Fernando Pessoa. Este ponto de vista é curioso pelo que tem de curioso no que está certo, no que está errado e no assim-assim.
Primeiro, note-se que esta «sombra» é a do grande público e da Academia (mas já não da crítica). Porque, de resto, até se pode traçar um evidente paralelo entre a influência mais ou menos assumida que estes dois senhores exerceram respectivamente sobre a prosa e a poesia portuguesas ao longo do século passado.
Se não houve quase nenhum dos nossos grandes poetas que lhe foram posteriores a negar o estro de Pessoa, também não houve um só dos principais prosadores que não afirmasse de forma explícita a dívida a Brandão - Aquilino (que com ele fundou a Seara Nova e lhe terá facilitado a edição na Bertrand frequentada por ambos), Ferreira de Castro, Torga (veja-se o que Os Bichos herdam do Portugal Pequenino...), Vergílio Ferreira e Saramago, já para nem falar nos devotos Nemésio, Gomes Ferreira e Cardoso Pires, nem em senhoras como Agustina (que apesar de tudo deve ainda mais a Camilo e a Pascoaes, de quem parece um sobre-valorizado sub-produto) e a tão outra e inclassificável Gabriela Llansol, segunda grande aventura nas bordas da prosa portuguesa desde... Raul Brandão, pois. Ninguém, ninguém escapa.
E nisso, goste-se mais ou menos, não há discussão: Pessoa (não gosto muito) e Brandão (gosto de um modo imenso) são incomparavelmente os dois nomes de maior influência na literatura portuguesa do séc.XX e ainda talvez no que se leva até agora do XXI, apesar do Super-Herberto e de Saramago.
Segundo, este par serve de exemplo para demonstrar que, mais do que a Academia, o que mormente concorre para firmar o canône e estabelecer a fortuna da opera é apenas o investimento, desde o estadual (público) ao privado (editorial etc.). Sabe-se, embora pouco se fale, como Pessoa deve a fama ao «lobbying» que começou com António Ferro, em pleno Estado Novo, e continuou e continua com milhões de contos e euros - desde logo do erário público - após o 25 de Abril; promoção no Brasil cedo apoiada desde Casais Monteiro e Cecília Meireles. Isto quando o poeta era pouco mais do que desconhecido e Pascoaes, por exemplo, traduzido em várias línguas no estrangeiro e lá apontado para o Nobel - mas cá proscrito pelo Estado Novo e pela ortodoxia católica e vigiado pela PIDE por outras razões.
Claro: Pessoa vingou porque, além do mérito versejador, se presta ao gosto quase sempre fácil, popular, às vezes quase kitsch, parecendo nesse domínio imbatível e universal. Vingou principalmente onde não é moderno. Mas se também parece difícil pôr o leitor comum a mergulhar maravilhado no Húmus, parece facílimo pô-lo a gostar do nada moderno mas espantoso lado «solar» brandoniano, sobretudo esse tríptico extraordinário formado por Os Pescadores, As Ilhas Desconhecidas e Portugal Pequenino. Basta que os leia.
Terceiro, e quanto ao modernismo: "a angústia da influência". Fernando Pessoa, que de tudo lia e de tudo falava, nunca se referiu a Raul Brandão. Como não parece possível que o não lesse, tratando-se de alguém que publicava na Renascença e na Bertrand, fácil será perceber-lhe o silêncio. O Húmus é o livro mais influente de toda a prosa portuguesa do séc.XX - e, conforme já muita gente notou (por exemplo: os pessoanos Prado Coelho), influenciou desde logo o Livro do Desassossego.
Se na poesia, de um pré-moderno Cesário a um finissecular Pessanha, as influências de Pessoa são óbvias e assumidas, na prosa não. O que não significa que não estejam lá. Sobretudo neste caso, pode e deve falar-se de algo mais do que simples «influência»...
Mais: o Livro do Desassossego é escrito já bastante depois de Os Cadernos de Malte Laurids Brigge e pouco antes (na melhor das hipóteses) de As Ondas. O Humus sai pouco depois do primeiro e muito antes do segundo. Sublinhe-se este ponto, imaginando como seria se a Europa e o Mundo também o conhecessem...
.
.