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Cesariny (5-8-23)

Assinalamos hoje, a partir da que foi em várias temporadas a sua praia minhota, o centenário de Mário Cesariny ["oh meu Deus de Vasconcelos"] - indivíduo bastante genial nascido em Lisboa a 9 de Agosto de 1923. Representou para o século XX português o que tinham sido entre a Idade Média e a Moderna um Gil Vicente e entre a Moderna e a Contemporânea um Bocage: um sopro de liberdade, licenciosidade e espontaneidade como a literatura ("afinal o que importa") portuguesa não terá visto em mais ninguém. De resto, todos os que com ele alguma vez privaram foram testemunhas dessa espontaneidade ao mais alto grau, capaz de uma rima ou de um epigrama fulgurantes em meras fracções de segundo. Cesariny era um caso sério de génio; infelizmente, dirão alguns (como nós), ou felizmente, dirão outros, dedicou-se tanto à sátira e ao humor que poucas vezes parou para o escutar a fundo. Quando o fez, sacou das profundezas por exemplo O Navio de Espelhos, dos principais candidatos ao título de mais belo poema alguma vez escrito em língua portuguesa.

Senhor de tão bom gosto literário (por mais que o desdenhasse), «educou» para os seus escritores de eleição sucessivas gerações de discípulos e de leitores, com porventura mais eficácia do que Breton em França porque muito menos sentencioso e papal. E devemos-lhe ainda, entre várias coisas, a «salvação» de António Maria Lisboa - o nosso outro grande génio surrealista, que Cesariny, meio por modéstia meio para valorizar o amigo de temporã morte (que sempre mitificou), manteve até ao fim da vida ser "o maior", "ele é que era!" - e a «desocultação» do mago Pascoaes, por quem outros terão feito mais (António Cândido Franco à cabeça) mas ninguém, de novo, com tanta eficácia, exponenciada quando pela primeira vez se atirou a pedrada ao charco afirmando o que deveria parecer óbvio: Pascoaes interessa muito mais do que Pessoa.

Se no triste Portugal salazarento foi possível alguma graça e alguma «verve», alguma vida, alguma corrente de ar, parte mui considerável do mérito coube a este irredutível iconoclasta.