Até por razões familiares, além das humanitárias elementares, esta casa tem simpatia pela causa dos refugiados. E também não lhe é antipática, dentro de incertos limites, a ideia de alguma compensação - não apenas simbólica - aos africanos após séculos de exploração colonial europeia. E precisamente para isso é que existe o Nobel... da Paz. Porque o da Literatura, assim de repente, deveria era premiar, bruxos, a dita cuja.
Das duas, uma: ou se entende que o prémio serve para glorificar o maior escritor vivo, e nesse caso Pascal Quignard já o devia ter ganhado há muitos anos; ou se prefere entender que, assegurado um módico de qualidade, ele deve laurear o mais célebre - e aí vai sendo difícil de perceber, ano após ano, o desdém por uma cada vez mais favorita Margaret Atwood, a título de exemplo.
Esta mania de optar ano sim ano não pelo politicamente correcto ou pelas causas «nobres», olhando o escritor como pouco mais do que um pretexto para uma elaboração melhorada de discurso de Miss Mundo, e para a academia se poder divertir a causar surpresa, é que se torna cada vez mais absurda: e talvez bastante irresponsável, na medida em que contribui para a banalização (no sentido qualitativo) da literatura, mal cada vez mais evidente e porventura sem remédio, por este andar. Banaliza o prémio, o que não é grave, mas banaliza igualmente a literatura, o que é. Um escritor: neste nosso tão pobre séc.XXI, parece coisa cada vez mais rara. E era aí que o Nobel, se se desse ao respeito, isto independentemente da posição que tenhamos sobre a utilidade ou inutilidade dos prémios literários, devia entrar. Mas uma academia que fez sempre questão, como se fizesse disso (mais uma) gala, de desdenhar de «monstros» como Tolstoi, Virginia Woolf, Garcia Lorca, Kafka, Jorge Luis Borges, o nosso magnífico primeiro candidato (Pessoa nunca o chegou a ser, por razões óbvias) Pascoaes, e agora Quignard... A história do Nobel é a de uma instituição que raramente se dá ao respeito.
[Deveras espantoso: deitando uma vista de olhos à lista de mais de uma centena de premiados, mais de metade é constituída por desconhecidos-ainda-hoje ou que se tornaram conhecidos apenas devido ao prémio. Lorca, é certo que morreu cedo, não ganhou, mas em 1922 vence um espanhol de que já nos esqueceu o nome desde há 2 minutos. Por duas vezes, foram concedidos prémios ex-aequo a dois suecos absolutamente desconhecidos (!) de uma vez só (!!), e o mesmo décadas antes (!) a dois desconhecidíssimos escritores da vizinha dilecta Dinamarca; Suécia e Dinamarca que ainda por cima já tiveram vários outros premiados; enquanto Brasil e Argentina nunca tiveram direito a um único, e toda a literariamente riquíssima América do Sul apenas teve 4, os mesmos que agora a relativamente pobre África. Mesmo o complexo pós-colonial é portanto como o próprio prémio: só existe a partir do séc.XX.]
Para a brincadeira, poderiam criar um prémio segundo: Prémio Revelação, por exemplo. O prémio principal ia para o escritor-dos-bons, ainda que seja um sacana, ainda que seja um criminoso; e o secundário para o ilustre desconhecido das causas bonitas, ou de uma qualquer literatura periférica para a qual se queira chamar a atenção. Era simples.
Não, claro que nunca lemos Abdulrazak Gurnah.