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Pascoaes, cem anos de Verbo Escuro

A 15 de Março de 1914 - corre hoje um século preciso - ultimava Teixeira de Pascoaes  nos  prelos da Renascença Portuguesa a primeira edição de Verbo Escuro. 

O livro, consagrando "a seriedade escura da palavra", o verbo das "palavras indecisas, nevoentas do sonho que as gerou",  ensaia logo de início  uma peregrina programática, invectivando os gerais poetas a fazerem o que fez e faria  este toda a vida, cantar os fantasmas ("Cantae o que não existe... O resto é cinza."). E peregrino, mas nada devoto, é ele todo, facilitando no grau máximo o simpático apodo de «poeta tolinho» que, por exemplo, uma certa ortodoxia católica sempre lhe dedicou. Não admira: "Crear: eis o mal da creatura, o erro fatal que a diminue. Ela definha na sua obra. / O Universo é a obra, a pessoa de Deus e o unico argumento contra a sua existencia"; ""Amae a Deus sobre todas as cousas. Decerto. É proprio do creador amar a creatura"; "O homem não é o peccador: é o Peccado"; "A Arte eleva-nos ao Homem, mas afasta-nos dos homens. Na Natureza ha o ritmo e não a rima. É uma obra em versiculos, como a Biblia"; e dizer de Deus ser a "alegria creadora, infernal", à que sucedeu a "tristeza que redime" de Cristo; e empreender solitárias excursões nocturnas a cemitérios como mote de dissertação; etc.
(Quem diz o clero, diz a burguesia. Também não pasmando. "Em sociedade só depois de morto e com os mortos", evitando na idade maior, já por isso retirado no Marão, "o crepusculo, a esposa e a livre critica", entre o anjo da infância e o cidadão, "especie de fossil animado". Entre uma e outra  banda da ponte de São Gonçalo, Pobre Tolo. Entre  as  faces  ilusórias  do  tempo, "O futuro é o passado que amanhece". Entre a vida e a morte, mas sempre olhando para esta, do modo desta: "Para os olhos da caveira tudo o que existe - é osso.". O Verbo Escuro, a própria saudade em negativo)  


Além da  intrínseca, já de si inigualada, de que adiante se dirá, tem este título uma importância fundamental e estranhamente esquecida, ou desconhecida, ou menorizada na carreira literária do autor. É, a várias escalas, um, o, marco. Começava nele, desde logo, a viragem para a prosa, que assumiria daí em diante foros de quase absoluta soberania, posto que a questão aqui  valha só  disso, forma. Jacinto do Prado Coelho destacava, num lúcido texto («Pascoaes: Do Verso à Prosa»), embora a outro propósito, esta prosa na qual "irrompe a cada passo a poesia, brilham os relâmpagos da intuição, a linguagem é imaginosa, metafórica e simbólica, a escrita procede por associação, sucedem-se bruscos saltos, desgarres imprevistos", aproximando-a do surrealismo que na década seguinte surgiria em França (muito de crer  não ter nunca  Breton  sabido  deste  mesmo então ignoto, force-se, «precursor» português, não mais forçado porém do que quase todos os nomes que constam do  famoso elenco do Primeiro Manifesto...) "no binómio sonho-humor e na irreverência gavroche perante a seriedade e a compostura, virtudes burguesas, senhoras respeitáveis". Cesariny - a quem, sublinhe-se sempre, deve Pascoaes muita da nem assim  suficiente propaganda que foi tendo - certamente subscreveria isto, e  fartou-se  de  bater na tecla. Que, contudo, não  soará ainda, tratando de tão escuro verbo, a principal.          
 
Para quem não seja, com razoável critério, demasiado apreciador da algo monótona e de arte tão despreocupada* produção em verso do poeta amarantino, há mesmo que lhe procurar  na prosa as peças maiores. E maiores do que as imaginadas biografias, maiores do que os relatos de viagem, maiores do que esses dois interessantíssimos livros de memórias (o que levou o nome, mas mais elaborado, e O Advogado e o Poeta, o propriamente dito), serão os dois títulos de aforismos, este Verbo Escuro e O Bailado, tão louvados pelo aludido Cesariny. Talvez ao contrário do tripulante d'«O Navio de Espelhos», que parecia preferir o segundo (e em todo o caso extraordinário, bem entendido), pode antes escolher-se o primeiro, aliás um dos grandes cumes no género em toda a história da literatura, ao nível do qual apenas chegarão à memória os fragmentos conhecidos de Heraclito de Éfeso e os de Novalis. Nele consegue "o homem que deitava fogo da cabeça" (tradição oral em Gatão, ainda hoje) combinar na mais alta elevação as duas grandes linhas de força do que valeu como escritor: um tremendo poder de sugestão evocativa e uma profundidade visionária sem qualquer par nas letras lusas.
(De resto, há em toda a prosa portuguesa publicada mais ou menos conhecida acaso um livro que se poderá pôr a lado deste: o Húmus, de Raul Brandão. Mas é difícil encontrar mais algum)
 
 
* Demonstração ainda mais enervante de desaproveitamento literário de génio do que  a de Camilo Castelo Branco, que, além de falta de tempo, sempre padeceria talvez de  certa  falta de ensejo, tecnicamente falando. Com Joaquim, não: dava em tudo só a impressão de não estar para isso, como se escrever fosse coisa menor, à boa moda céltica. Escrevia como quem fuma os cigarros que de facto fumava. Muitos, sobretudo para o padrão da época. (Sofre q.b. quem isto aponta por conhecer, e ser bom amigo de, criatura bem parecida e bem parecida. Que ao menos deixou já de fumar.)