ii - Mais do que qualquer outra palavra que agora lembre, se comparável existe, «livro» designa em simultâneo ideia e matéria, substância e forma, conteúdo e continente. Chamamos livro à criação mental como ao suporte em que se vem a plasmar, sempre o mesmo, mais que sejam as variantes: conjunto de folhas de papel agrupadas em cadernos que se reúnem num corpo único, hoje em dia (até ao séc.XIX, inclusivé, não necessariamente) quase sempre coberto, por uma folha ou por cartão, recoberto ou não de material acrescido - tecido, pele, etc. É, em grande parte, esse monismo mais do que linguístico, essa duplicidade unificada em linguagem e em cosa mentale que o tornam objecto de devoção sem par. Não como a arte, que por inteiro consubstancia a ideia na matéria; ou a música, que pelo contrário nem chega a depender de qualquer das formas reprodutoras que a manifestam em diferido, quase até à indiferença.
iii - A propósito de música, habitualmente apontada como o exemplo do que se profetiza vir a suceder ao livro, supondo a relevância quase residual (restringida, grosso modo, aos coleccionadores) da preferência pelo vinil da mesma ordem da que, em breve, se assinalaria aos cultores do "livro em papel". Coisas tão diversas que talvez dispensassem toda esta nota. Em música, a diferença entre o analógico e o digital é «apenas» a qualidade do som, ainda por cima discutível e de apreciação variável consoante o género ou o instrumento tocado; há quem prefira vinil, há quem prefira cd's e mp's e caetera. Não assim os livros: a mais da ligação física e metafísica aludida no ponto anterior que une, casamento de séculos, leitor e objecto, só uma criatura muito estranha dirá preferir ler (o quer que seja, mas sobretudo literatura propriamente dita) de um ecrã.
iii - A propósito de música, habitualmente apontada como o exemplo do que se profetiza vir a suceder ao livro, supondo a relevância quase residual (restringida, grosso modo, aos coleccionadores) da preferência pelo vinil da mesma ordem da que, em breve, se assinalaria aos cultores do "livro em papel". Coisas tão diversas que talvez dispensassem toda esta nota. Em música, a diferença entre o analógico e o digital é «apenas» a qualidade do som, ainda por cima discutível e de apreciação variável consoante o género ou o instrumento tocado; há quem prefira vinil, há quem prefira cd's e mp's e caetera. Não assim os livros: a mais da ligação física e metafísica aludida no ponto anterior que une, casamento de séculos, leitor e objecto, só uma criatura muito estranha dirá preferir ler (o quer que seja, mas sobretudo literatura propriamente dita) de um ecrã.
iv - Só para remate. Entende-se bem que toda uma macro-indústria da informática e das telecomunicações associadas, quase plenipotenciária nos tempos que correm por esse mundo fora, governo atrás de governo*, esplendoroso capitalismo, proclame um futuro exclusivamente digital, em que até a humana respiração se processe por via electrónica. Entende-se menos é que qualquer cabeça (e há muitas) com um q.i., digamos, acima de 15 caia na, e reproduza a, conversa. Fiadíssima.
Comentava alguém, Mark Twain, salvo erro, acerca de falsas notícias sobre a própria morte, terem sido "manifestamente prematuras". As que querem matar o livro (também matando escritores em geral, que deviriam, no máximo, «digitadores») não serão sequer prematuras, e seriam é perversas, se acaso bem sucedidas. Como nem isso, são apenas palermas.
* [Lendo eles mesmos cada vez menos, passa-lhes ao lado um axioma elementar: o de que o cidadão que lê é, caetaris paribus, um cidadão melhor]