Por uma daquelas curiosas e habituais coincidências do destino, este dia em que não se assinalou como soía a ressurreição de Cristo foi também o dia em que (quase não) se assinalou o 175.º aniversário de nascimento do Anti-Cristo Isidore Ducasse, «Comte de Lautréamont»; circunstância de que o livreiro se deu conta por, numa semelhante manifestação de «acaso objectivo», ter no mesmíssimo dia deitado a mão às «Cartas» que aqui tinha paradas à espera há semanas.
Interessante pensar que livro-cometa extrairia destes anti-tempos que vivemos o autor dos anti(?)-genesíacos e fulgurantemente geniais e hoje (após o séc.XX) não tão distopicamente soantes «Cantos de Maldoror», os quais por si só, sem recurso a qualquer feitiçaria que não a da linguagem, justificam o título de «Livro Negro» da história da literatura. Muito graças ao papa surrealista André Breton, sem cujo resgate talvez ninguém agora dele ouvisse falar, esse livro único motiva, só por exemplo, uma colecção de «Cahiers Lautréamont» que são publicados em França desde os anos 80. Há quatro décadas que com frequência periódica escritores, críticos e investigadores conseguem arranjar matéria sempre nova neste texto - uma pequena «bíblia» cuja ferocidade faz a do Antigo Testamento parecer canção de embalar.
Cá em Portugal, com um atraso ainda maior do que costume, os «Cantos de Maldoror» esperariam um exacto século para ver a luz do dia, ainda por cima apresentados por um prefácio supinamente parvo do nisso useiro e vezeiro vate Jorge de Sena (justificou uma indignada resposta do nosso surrealista Cesariny); entretanto, em contrapartida, conheceram já uma dezena de edições em várias casas (Moraes, Fenda, Quasi, Antígona, etc.), tendo por tradutores os poetas Pedro Tamen e Manuel de Freitas.
Lautréamont estará em destaque no nosso próximo boletim de Abril, a publicar no final do mês.