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A Literatura no Desemprego

é mais do que uma moda: quem apostar que o vencedor de qualquer chorudo prémio literário luso será apresentado como «desempregado» deve ter, no mínimo, 50% de probabilidades de acertar. Este sinal dos nossos tristonhos tempos mereceria talvez só um conformado encolher de ombros não fôra o irritante tom latente, entre a condescendência e o paternalismo, com que os patronos (palavra da mesma família de patrões) parecem louvar a coisa e lavar o que de consciência possa restar como veste de capital. No meio de todos os outros de um geral empobrecimento da população que se quer lento e insinuante (não anda a dormir, quem o promove), será este só mais um sinal, mas bem elucidativo do anunciado regresso ao tempo da caridade e da esmola cujo cheiro, não especialmente agradável, vai começando a pairar pelos ares.
(O que menos se entende é o aparente pouco incómodo com que muitos dos ditos vencedores se prestam ao papel. Ainda que haja nos concursos alguma cláusula que obrigue à indicação da profissão - informação de relevância literária quase tão funda quanto a de saber se a pessoa prefere peixe ou bife, praia ou campo, despir-se ou vestir-se -, não haverá decerto a proibição de dar resposta torta a quem no assunto insista.)
 
De Julien Gracq [1910-2007], escritor francês de fugaz ligação durante a juventude ao círculo surrealista, a que nunca se vinculou e de que nunca se desvinculou, ficou sobretudo famoso fora de França o breve ensaio A Literatura no Estômago, murro no estômago, precisamente, à instituição, ao sentido e à legitimidade dos prémios literários. (E às «carreiras» literárias, e aos cortejos, pompas e feiras de vaidades, longo etc.). Falava o do Loire, a páginas tantas, nos escritores recém-chegados com o "ar de sair de uma estufa", que "querem estar à altura do que deles se espera". "A «saída» dum novo escritor oferece-nos frequentemente o espectáculo penoso duma pileca esgalgada tentando lugubremente levantar a garupa no meio dum estralejar teatral de chicotes de circo - nada a fazer; uma volta à pista e basta, fareja o estábulo imediatamente e logo corre para a manjedoura". Palavras não muito mansas, mas talvez ainda mais actuais sessenta e tal anos depois.

Uma das várias perversões intrínsecas e inevitáveis dos prémios literários é o reforço dessa velha falácia: a de que a literatura, como tudo no mundo, se compra e se vende, e o escritor, se não quiser ser «maldito», será mais ou menos domável pelo «meio». Estando desempregado, torna-se evidentemente mais fácil domá-lo. Eis o ponto.


[De La Littérature à l'Estomac há pelo menos uma  tradução portuguesa, da recomendável mão  de Ernesto Sampaio, publicada primeiro na colecção «A Barca Solar» e depois reaproveitada pela Assírio & Alvim já nos anos 80; a agora usada. O homem que se deixou morrer de amor - por Fernanda Alves, a quem não quis, soube, sobreviver -, e que tinha aliás vários pontos de contacto, na personalidade e no ideário, com Gracq, acrescentou nessa segunda edição um prefácio da própria lavra em que denunciava dos prémios, no caso português, o "acúmulo de pequenas corrupções e imposturas, de invejas e conspirações ridículas, de conluios vergonhosos entre escritores e jurados, de mandarinatos e tráficos de influências", de que logo sobrariam o livro e a leitura. Denúncia, como se saberá, pertinente o bastante, também hoje ainda mais, mas que levaria já a toda outra conversa]