Suponho que ninguém se atreva a discutir a Angelina e Raul Brandão o estatuto de mais enternecedor casal de toda a literatura portuguesa.
Conheceram-se por 1896, em Guimarães, onde o portuense começava a breve carreira militar de que muito cedo se reformaria. Casaram. E a partir daí, segundo consta, nunca mais se largaram um ao outro. Narra a irmã de Pascoaes que, visitando este com ela pela primeira vez a Casa do Alto, convidou à saída Brandão (como já várias vezes fizera por carta) para a retribuição da visita, acompanhando-o ao Marão. Esqueceu-se de estender o convite a Maria Angelina. Ela e o homem entreolhavam-se, olhavam para Pascoaes, tornavam a olhar um para o outro, e andou-se nisto algum tempo - até Maria da Glória perceber e chamar a atenção do irmão. Brandão explode: "Apre... Do que me livrou... É que eu nunca me separei de minha mulher!" Chegando, aliás, a levá-la para «A Brasileira do Chiado» lisboeta, numa época em que senhoras num café roçava o escândalo.
Por menos simpatizante que se seja do instituto do casamento, ninguém pode deixar de se deliciar com este.
Conheceram-se por 1896, em Guimarães, onde o portuense começava a breve carreira militar de que muito cedo se reformaria. Casaram. E a partir daí, segundo consta, nunca mais se largaram um ao outro. Narra a irmã de Pascoaes que, visitando este com ela pela primeira vez a Casa do Alto, convidou à saída Brandão (como já várias vezes fizera por carta) para a retribuição da visita, acompanhando-o ao Marão. Esqueceu-se de estender o convite a Maria Angelina. Ela e o homem entreolhavam-se, olhavam para Pascoaes, tornavam a olhar um para o outro, e andou-se nisto algum tempo - até Maria da Glória perceber e chamar a atenção do irmão. Brandão explode: "Apre... Do que me livrou... É que eu nunca me separei de minha mulher!" Chegando, aliás, a levá-la para «A Brasileira do Chiado» lisboeta, numa época em que senhoras num café roçava o escândalo.
Por menos simpatizante que se seja do instituto do casamento, ninguém pode deixar de se deliciar com este.
Além da carta aqui transcrita há dias, é também de Maio de 1930 a publicação do livro que assinaram em conjunto, último saído em vida do escritor: esse igualmente delicioso Portugal Pequenino (aqui). Evidentemente, foi Raul a escrevê-lo. Mas nota-se aqui e ali a mão da mulher, entremeando na prosa alguma graça de humor e jovialidade apropriadas a um livro do género, só que de todo estranha ao espírito do marido. Quem nunca leu, mexa-se.
Voltando aos fulgurantes prefácios das Memórias, segue agora o final do segundo, «O Silêncio e o Lume» - longo texto que é das mais belas declarações de amor alguma vez feitas por um homem a uma mulher. Normalmente, fazem-se no início. Esta, foi feita no fim, os dois já de cabelos brancos, apesar da diferença de idade. "Enternecedor" é capaz de ser pouco.
[Não deixaram descendência. Esgotaram-se um no outro.
Um Coração e uma Vontade seria o título do livro de memórias de Angelina já viúva.]
Um Coração e uma Vontade seria o título do livro de memórias de Angelina já viúva.]
"Nas caladas noites de Inverno, quando despego o olhar dos papéis, encontro sempre os teus olhos que me envolvem de ternura. Isto é quase nada - e revolve o mundo. É saudade, e a vida que passa e a morte que se aproxima, enquanto o tronco arde no lume, o pinheiro estala ou o carvalho amorroa. De fora vem o hálito da floresta e das águas. Mais silêncio... Surpreendo-te então a repetir o meu pensamento, ou é o teu que me acode ao mesmo tempo. Não fales! Outra figura transparece atrás da tua figura. Nesse momento até o lume parece encantado e ficas tão linda que antevejo a vida misteriosa que me fascina e deslumbra. Isto só dura um segundo. Mas basta às vezes que sorrias e é a tua alma que sorri, basta às vezes que não fales e é a tua alma que me fala! Nesse momento somos um ser: eu sou tu, tu és eu; tu sorris, eu sorrio... Então cai sobre nós o silêncio - e eu descubro o que só nos é dado ver depois da morte, a amplidão das almas, seu poder magnético e, num deslumbramento, ao lado da existência pueril, a imensidade do universo e o infinito que nos rodeia e de que perdemos a sensação pelo hábito. A casa, que tem raízes de granito, voga no éter arrastada num turbilhão que me mete medo... Alguém nos vai bater à porta... Alguém se aproxima pouco e pouco num cerco que se aperta e em passos tão leves que mal se ouvem... Rodeia-nos o silêncio vivo, alma do mundo, o silêncio que é talvez o que eu mais amo na aldeia, este silêncio perfumado que envolve a nossa casa na solidão tremenda da noite: mais perto de mim arfa alguma coisa de religioso e profundo: - sinto a Vida e a Morte. Sinto-as enquanto a última brasa se apaga e as tuas mãos se agarram às minhas mãos de velho."
Calma, caro leitor, calma. Ao fim de uns minutos recuperará o fôlego.