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Pascoaes, «the man of the eyes»


A senhora que não está na fotografia, porque dela nem  se conhece nenhuma, é Leonor Dagge, a inglesa que foi a musa de Pascoaes. Pouco dado a estas coisas, mais habituado às almas do outro mundo do que propriamente às deste, viu-a o poeta num mundaníssimo eléctrico (o famoso «americano») que saía da Foz para o Porto, então ainda povoações distintas. Viu-a e não teve senão ficar fulminado. "Foi numa tarde de outubro, numa dessas tardes de sobrenatural melancolia (...) Era Ela, em presença humana, aquele sonho que enevoou de luz a minha infância, e paira ainda nos longes do meu ser (...) É certo que o meu espanto a impressionou; e mal conteve, nos lábios, um sorriso. Tornou-se visível, para ela, como num súbito espelho idealizado, a sua imagem projectada nos meus olhos. A si mesma se viu como eu a via, e ficou naturalmente lisonjeada. Assim é que eu devia interpretar o seu sorriso, se o bom senso reinasse na cabeça de um poeta, como um rei de gelo num país tropical".
Não reina, e muito menos nestas alturas. O pouco que se sabe é que ainda se viram várias vezes nesse mesmo eléctrico, ela "branca e fina, de olhos pretos pousados num romance", ele fascinado e depois alheado "dos clientes, do meu sócio, de todas as coisas deste mundo. Quebrara-se-me o ritmo monótono em que vivia". Sabe-se também que, descoberta a morada da moça em Inglaterra, começou uma correspondência que chegou a meter a mãe dela e a irmã dele (!) e em que já se falava de casamentos (!), sem grandes modas. E sabe-se ainda que o lobo do Marão deixou as serranias e o Porto, onde por esse tempo advogava, para se meter num navio e ir a Londres atrás da criatura: "eu, que fugia dela para os pinhais de Nevogilde, resolvi persegui-la através do mar".
Do que lá se tenha passado ao certo, ninguém tem nem ideia, a não ser do desenlace: o regresso solteiríssimo de "the man of the eyes" (palavras da filha, segundo a mãe). Durante muitos anos deixou o dr.Joaquim o assunto na penumbra, «limitando-se» a escrever-lhe logo um livro, o Marânus, em que Leonor, sob a forma acrescentada Eleonor (melhor, ó poeta, teria sido Eleanor(e), nessas exactas 7/8 letras o mais belo nome jamais inventado), assume o demasiado ideal protagonismo: "Quem é não é a Leonor: é o Amor" (O Pobre Tolo). Só várias décadas passadas o abordaria ao de leve, embora sempre com muita (e boa) literatura, no livro O advogado e o poeta, livro de memórias mais tardio, (ainda) mais interessante e em todo o caso mais sinceramente memorial do que o literal Livro de Memórias. São dele as passagens citadas. O capítulo em questão, dedicado a Leonor, é o sexto e último, pormenor nada despiciendo.

 
Não é segredo a devoção com aspectos religiosos que alimento por este nosso super-génio. O maior defeito que lhe ponho é mesmo este: detestava, ou fingia detestar, o Porto. Sabendo-se porém como a ligação das pessoas aos lugares deste mundo tem muito - tem quase tudo - de psicológico e de emocional, facilmente se lhe perdoará a falha. Aqui viveu a violência de uma profissão (advocacia) que lhe seria tão anti-natura, e que acabou por largar ao fim de alguns anos, para se recolher ao solar de Gatão, com o escritório-biblioteca para os dias e o sótão para as obscuras noites mediúnicas. E aqui viveu a violência acrescida, mas fundamental, do grande incêndio amoroso - logo ele, que à parte o muito tabaco que fumava nunca foi, digamos, parco em lume ("a vida é um auto-de-fé perpétuo", palavras do próprio, "o homem que deita fogo da cabeça", palavras dos espantados camponeses vizinhos).
Na sua relativa inocência destes assuntos, não sabia o nosso poeta que isso - aparições mais ou menos espontâneas em forma de mulher - é apesar de tudo relativamente habitual para aquelas bandas («Passeio Alegre», dizem, por substantiva e adjectiva tolice), onde o Douro se precipita de febre sobre o Atlântico. Estou em condições de garantir que ainda há exactamente dois meses, exactamente por estas horas, aconteceu uma. E que de facto nunca mais nos saem da cabeça. Teoria das correspondências: depois de conhecer o mar, nenhum rio - nem com a força deste Douro - é capaz de voltar atrás. Abandonou o próprio tempo.