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Portugal, país de suicidas

Foi o grande episódio de choque - quanto a personagens activas, e não a motes, bem entendido - da história da literatura portuguesa. A 1 de Junho de 1890, Camilo Castelo Branco encostava um revólver à própria cabeça e desfechava-lhe um tiro. Antero de Quental faria pouco depois o mesmo, num suicídio até mais «significativo» pelo que representava de posição pessoal, pessimista, não se esgotando, como o de Camilo, na doença (ainda que esta deva também ter sido determinante). Mas o do Torturado de Seide é o grande abalo, o grande tremor de terra, que só minimamente poderá compreender quem haja a vaga ideia da importância da pessoa de Camilo Castelo Branco na sociedade portuguesa - portuense, sobretudo - da época. Já com duas décadas de retiro minhoto (embora continuasse a vir ao Porto, por regra, todas as semanas), nem assim o homem perdera o carisma e o peso de figurão que lhe asseguraram, até hoje, o dificilmente discutível estatuto de mais importante cidadão da Invicta - nascido por engano em Lisboa, "como se Maomé nascesse na Gronelândia", segundo a certeira comparação invertida de Pascoaes. Conheceu a glória ainda em vida, e foi ainda em vida seguramente o mais lido (em Portugal) escritor português de todos os tempos. Espantava-se, por isso, Fialho, vindo de Lisboa de propósito para o funeral, ao dar com um cortejo fúnebre quase às moscas. Não conhecia uma das mais inveteradas características portuenses: o ressentimento. De fachada granítica, como o casario. Camilo, por várias e complexas razões que não vamos agora aqui tratar, teve sempre com o Porto (a cidade que o pôs a ferros, recorde-se) uma encarniçada relação de amor-ódio, típica de certas paixões fatais. E fartou-se de lhe vergastar, com a temível pena, a população, mesmo se logo a seguir, noutro romance ou noutra novela, a louvava e levava aos píncaros. É um portuense que escreve isto, e qualquer outro portuense o perceberá: o povo que o castigou com a ausência e o deixou ir a enterrar sozinho, enquanto repetia pelas ruas "Morreu? Já não era sem tempo", foi o mesmo que se há-de ter fechado em casa a chorá-lo noites a fio.

O que acontecera nesse primeiro de Junho para levar a São Miguel de Seide o draconiano demónio do suicídio foi, conforme se saberá, a aguardada visita de Edmundo Machado, médico aveirense então reputadíssimo e tido por milagreiro na oftalmologia. Perguntando-lhe o romancista pelo diagnóstico, respondeu o clínico que repousasse e fosse tomar uns ares ao Gerês, por exemplo. Camilo, que de parvo não tinha nada, tendo por outro lado os seus rudimentos de medicina, não precisou ouvir mais. Quando Ana Augusta encaminhava o visitante para a saída, ouviu um tiro, dado nesta fotografada sala.

Foi como segue, actualizada na ortografia, a célebre carta de Camilo convocando Edmundo Machado: "Sou o cadáver representante de um nome que teve alguma reputação gloriosa neste país durante 40 anos de trabalho. Chamo-me Camilo Castelo Branco e estou cego. Ainda há quinze dias podia ver cingir-se a um dedo das minhas mãos uma flâmula escarlate. Depois, sobreveio uma forte oftalmia que me alastrou as córneas de tarjas sanguíneas. Há poucas horas ouvi ler no «Comércio do Porto» o nome de V.Ex.ª. Senti na alma uma extraordinária vibração de esperança. Poderá V.Ex.ª salvar-me? Se eu pudesse, se uma quase paralisia me não tivesse acorrentado a uma cadeira, iria procurá-lo. Não posso. Mas poderá V.Ex.ª dizer-me o que devo esperar desta irrupção sanguínea nuns olhos em que não havia até há pouco uma gota de sangue? Digne-se V.Ex.ª perdoar à infelicidade estas perguntas feitas tão sem cerimónia por um homem que não conhece."

O maior novelista português morreu há 125 anos e ninguém parece ter dado conta. Só a APE, embora discreta e também atrasada. E assinalando, de passagem, no seu comunicado que ele escreveu bastantinho, "ultrapassando, largamente, uma centena de títulos". Oh, senhores, ponham "largamente" nisso. Assim de repente, as centenas foram mais de três...
(Todas à luz da mera flâmula escarlate. Isto explica alguma coisa.)