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O Livro na Arte (IV) - Albrecht Dürer, «Os Quatro Santos»


É um dos mais conhecidos e reproduzidos, posto que nem de longe dos  mais directamente apelativos  trabalhos  compostos pelo pintor de Nuremberga - primeiro, estranha-se, só depois  se entranhando. Quadro-testamento, suposto  até o último por ele pintado, ter-lhe-á dedicado, se é verdade essa nota com que o encarece quando se propunha oferecê-lo  ao município da cidade, muito mais tempo do que a outro qualquer. «Os Quatro Santos» é título que aqui fica por bem mais razoável do que aquele que o tempo tratou de consagrar, «Os Quatro Apóstolos» (soa melhor, mas não vale, como nem será de Dürer).

Salva desde já opinião preferível, o que tanto impressiona no quadro não é a ascese formal (composição surpreendentemente elementar, em contra-mão da complexidade típica, por vezes, até excessiva -  dizia-o logo  Michelangelo -, do autor desse espantoso «Melencolia»), nem a pioneira, quase inédita, disposição vertical sobre-alongada dos painéis (isto, claro, para um olhar contemporâneo, que  terá  já  passado por tudo o  que veio depois, oitocentos inglês à cabeça; não assim até então), começada a ensaiar por ele noutros, também de santos e de Adão e Eva. O que logo faz pensar à própria medida que o vemos, e isto  cada vez mais,  é a tremenda verosimilhança  das  figuras, numa familiariedade perturbadora, como se estivessem prestes a aparecer representação exacta, não podendo ser senão essa, das personagens aludidas. Ia a escrever: como se as tivéssemos mesmo conhecido. Crentes, tresmalhados, pagãos e ateus, já para desfazer equívocos. Pequena ressalva: o discípulo favorito de Jesus,  com um ar demasiado germânico - o que aconteceu em grande parte das pinturas religiosas deste artista - e, convenhamos, pouquíssimo hebraico.

São três das figuras em causa, vê-se à transparência, São João, São Pedro (chave dourada na mão; das portas do paraíso, bem entendido) e São Paulo, em primeiro plano no painel direito, com a icónica espada para a luta pelo Novo Testamento (outras possíveis leituras: passagem da espada pré-conversão para a sabedoria superveniente, espada com que tanto matara e que o matará também, etc. que se queira) e pesado cartapácio, talvez a Bíblia mesma (como João), na mão, ex-libris, esse, fácil do primeiro teólogo católico. A pose de João é recolhida e delicada, próxima até da androginia, a de Pedro mais vigorosa, ainda que se lhe vislumbre certa expressão jovial, a de Paulo - efectivo e decerto deliberado «centro» do quadro, com o severo olhar de esguelha para o espectador sob a têmpora de veias salientes e o manto muito trabalhado de reflexos e iridescências, oposto ao de João, esbatido - ardorosa; nada que se não  esperasse, mas cuja concretização demonstra indiscutível mestria. Um confronto interessante entre os dois painéis é o da complementaridade das personagens do esquerdo, uma mais jovem e outra mais velha lendo-lhe sobre os ombros, face à linearidade independente das do direito. Outro, o que opõe as cores quentes do primeiro às frias do segundo, efeito reforçado pela luz descida da direita, que, por sua vez, remarca ainda o contraste entre a calma luminosa da esquerda e a sombra recortando o perfil taciturno de Paulo e o mais emotivo da quarta figura.   
Numa nota útil (para um estrangeiro; para qualquer compatriota, óbvia),  entre  muita  especulação  inútil daquela típica  psicologia de bolso a que se rende amiúde o simpático eufemismo de «hermenêutica» artística, deixada por  Norbert Wolf  em monografia votada ao renascentista a propósito disto, diz-se que Lutero, na introdução à pioneira Bíblia que para o alemão traduziu do latim, assegurava essenciais no livro-mor as epístolas dos dois primeiros e os Actos (não o «Evangelho», evidentemente; erro de tradução?) de Paulo. Sabendo-se da adesão,  certo que moderada,  de Dürer aos alvores da Reforma,  o caso estaria explicado,  se o não   estivesse logo à partida, tratando-se dos três mais queridos santos até no cânone católico. Ao contrário da quarta figura, em tudo extravagante, sem explicação convincente (painel direito, atrás de Paulo; pintada em discrição, só lhe aparece, além da cabeça, a mão segurando um rolo de papiro, único traço que poderia montar, e, esfumado, o pé esquerdo). Não fôra a subtil indicação directa sobre a própria tábua e não se saberia nunca ser São Marcos (que não era, em sentido estrito, apóstolo, problema que se põe igualmente em relação a Paulo e deixa supor também o título do quadro «apócrifo», além de parvo), mesmo se é esse o nome - e texto anexo respectivo - nas inscrições sobre o pé dos painéis que ainda hoje se defende como prova principal: é que nem foi o pintor quem as deixou, acrescentadas mais tarde, só após a morte, por um calígrafo amigo, nem a conturbada existência delas - logo e por muito tempo suprimidas, levados os dois planos para a Baviera sob ordem de Maximiliano, até lhes serem de novo acopladas - aconselharia mão no fogo por hipótese alguma. Imaginando que já alguém o possa ter sugerido, do que me parece que aqui se trata, em todo o caso, é um processo habitual em toda a História da Arte: o artista usa a composição como forma de homenagem a alguém que, com frequência, surge a destoar (é aqui assim: facies bem mais banal, "humano, demasiado humano", e que, ainda por cima, Dürer faz questão de pôr a olhar para alhures, pouco interessado seja no que for que ali se passe, humanissimamente distraído). A figura em questão pode ser só, por exemplo, um dos teólogos protestantes cujo círculo o artista integrava, «vestido» de secundária personagem. Que, aliás, não estivera identificada, se diria bem mais São Mateus do que São Marcos, apesar de este ter em abono uma passagem de louvor luteriana.

(A propósito de Lutero e do Cisma, catolicismo e protestantismo, viu muita gente no quadro a defesa do segundo contra o primeiro, entendendo as advertências das inscrições como um ataque subliminar ao Papado e às instituições da Igreja Romana, do que a posição secundária de Pedro na composição seria, de resto, sinal. Interpretações. Aspecto ainda repetido é o de que teria sido esta, reza a lenda, a primeira peça na Arte ocidental oferecida pelo artista a um poder político, ou até eventualmente a qualquer instituição temporal, e não à Igreja; disso, duvidaremos pronto pelo primeiro renascimento florentino)

Sobre os livros. Na reprodução que aqui se apresenta, não se notará, mas, vendo ao detalhe (ou ao vivo, de preferência, na Alte Pinakothek de Munique), confirma-se ser esta uma das representações mais  notavelmente minuciosas  em tempo algum  deles feitas. É sobretudo notável o desenho da encadernação do volume que Paulo segura na mão. De tão bom, mais se deixa passar o evidente e proverbial anacronismo de ambas as encadernações, implausíveis naquelas primeiras décadas da nossa era - confirma-me José Mário Santos, especialista seguro na matéria (e responsável pela casa Invicta, no Porto, a que se aconselha visita: talvez seja, no país, o último testemunho a grande escala de um tempo que parece ir-se sumindo), não haver sequer memória de peças do género, em material mais consistente, antes da Idade Média; até então, apenas se utilizaria pergaminho, e mesmo isso crê-se que só a partir do séc.III. Em todo o caso, quem  ainda não teria obrigação nenhuma de o saber, no início do séc.XVI, era Dürer; artista muito «cá de casa» a quem nesta própria série se deverá voltar bastante, pela preferência e pelo manancial de representação livresca.