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Ex-Libris (III): Moreira da Costa

Não é só das comercialmente mais bem situadas, é ainda uma das mais castiças (e antigas, somando várias gerações consecutivas) livrarias do Porto, daquelas que nenhum livreiro se importaria de remoer, encantado pela sobreloja em dossel que ao alto o cercaria. O único defeito evidente a apontar-lhe será mesmo este, o ex-libris, cujo dístico reza assim: "mesmo velho, é um bom amigo". Ora, se tal advérbio já pareceria inapropriado no caso humano (lembro por exemplo, aliás com saudade, o meu amicíssimo avô, abraçando-me risonho de cada vez que lhe entrava pela casa dentro fosse a que hora fosse: e não há, podem crer, nenhuma amizade jovem que valha isto), mais impertinente parece tratando-se de livros, que só não substituem no nosso adágio o vinho do Porto porque a lusa raça sempre foi mais dada à bebida do que à leitura. Dos novos, poucos livros têm graça. Dos velhos - já para não falar dos antigos, propriamente ditos - quase todos a têm. É até possível que daqui por cem anos alguém folheie o lixo que hoje se edita com o condescendente sorriso que fazemos ao pegar naquelas altamente improváveis brochuras de 1915: não as da Grande Guerra, mas as que, entre outras maravilhas, ofereciam receitas para as mulheres perderem a barba (juro que não estou a inventar).
 
Há pelo menos dois comentários a fazer sobre isto. O primeiro, para notar como a nossa contemporânea e envelhecida idade é talvez, no seu oco culto do novo (da imagem, do corpo, do objecto «útil», tudo o que é efémero), paradoxalmente a mais anti-natura, digamos mesmo alienada, da história da espécie humana, que passou a fazer-se esquecida da morte própria e da alheia, fugindo do tema enquanto enfia os progenitores no lar de terceira idade mais próximo: porque, enfim, há domingos para passar na placidez de um centro comercial. Já bastantes gregos e chineses escreviam, há três milénios, que do mundo o que interessa é o antigo, o perdido. Por alguma razão os velhos, já que deles se trata, têm memória especialmente apurada quanto à infância, mais longe, e memória imediata inútil. Toda a nostalgia e toda a melancolia dos homens provêm justamente daí: a Idade de Ouro é sempre o passado, nunca o futuro, salvo nos slogans da publicidade capitalista e da propaganda comunista.
O segundo, para um curiosíssimo e inesperado contraponto. Enquanto tantas livrarias alfarrabistas, e até algumas antiquárias, desvalorizam de modo mais ou menos consciente o livro antigo, baixando-lhe amiúde os preços ao ponto da concorrência desleal nos novos, seja pela dita cuja ou por simples desespero; enquanto isso, a Bertrand, num centro comercial - ei-lo - desta mesma cidade, resolve expor uma módica prateleira de livros mais velhos (não muito: anos 40 e 50), técnicos, de baixo valor no mercado especializado, por... 30 e 40€. Juro outra vez que não estou a inventar. Shopping Center Dolce Vita, para quem queira conferir. Compreensivelmente, continuam lá até hoje.
 
Lamentava-se o nosso «velho» épico do desconcerto do mundo, que os homens fazem a todo o tempo andar ao contrário, sobretudo se portugas. E não chegou a assistir a isto. Ou de como o ditado "A galinha da minha vizinha etc.", ainda que escrupulosa e universalmente repetido, convirá sempre q.b. ao galinheiro mais rico. Chama-se a isto, lá está, «capitalismo». Sem que se perceba muito bem porquê, parece que as pessoas gostam mesmo dele. Há gostos para tudo. Até masoquistas.