De Manuel Ferreira dir-se-ia, à parte o que já sabe mesmo quem não o conheceu - muita ciência, desde logo -, ter sido figura discretíssima, de feitio e de modos (impecavelmente cordiais), daquelas que, se desatentos, nos passam quase despercebidas na rua. Nada que faiscasse, nem uma chispa, nem uma alteração, nada. Pura serenidade. (Estava capaz de jurar que nunca terá dado um berro na vida, por exemplo; o que também não imagino no meu tio-avô João, livreiro da Figueirinhas, primeira livraria que frequentei tout court, ainda durante a infância, na Praça aos sábados de manhã; esta ideia, propensão a personalidade búdica de alguns velhos livreiros, dava sozinha um estudo). O que nele sobressaía e era único era «apenas» isto: a maneira como pegava nos livros. Daquelas coisas tão óbvias que, se calhar, ninguém mais nunca deu fé (mesmo quem isto escreve, só depois de ele defunto, em exercício já de memória). O homem tocava os livros como, sei lá bem, não era só delicadeza, nem só cuidado, nem só devoção, e de tudo um tanto, como cabelos ondulando, sombras, o movimento da fuga ou nem isso, gesto que não fosse a só fragilidade mas o modo segundo de ela o suspender entre as coisas vivas e as coisas mortas. Pegava-lhes de modo tão natural (hábito) e atento (profissão, de professar) como se em simultâneo fossem o ar devolvido da própria respiração e a respiração devolvida de alguém que muito se quer. (E não, não se está aqui a armar poesia barata. Era como que isto.)
O ex-libris, dos melhores que conheço, modelo de conseguimento com simplicidade de meios e de execução, foi composto por José Rodrigues algures na década de 80 (quatro vintes, quatro vezes vinte). Reza-lhe o mote que «Livros cerrados não fazem letrados». O que, sendo verdade, não deixa de se aplicar a quase todos os coleccionadores, mesmo mais modestos, como o autor destas linhas: por cada mil juntos, talvez se leia uma ou duas centenas, se tanto... Soa, em suma, um lema demasiado honesto para uma livraria.