Uma maneira de começar este
texto seria lamentar a morte do maior poeta português de sempre, mas o
desfasamento de tantos séculos em relação a Camões, fundador do nosso idioma,
desaconselha, por vários motivos, comparações ambiciosas de que não
tenhamos a justa medida. Uma outra, única outra, seria dizer só que morreu o
maior poeta português desde Camões; mas essa, ainda soando a mais a muitos,
soar-me-ia a menos. Entre estes dois nomes/números inteiros, não há hipóteses
de permeio: vigora entre nós, até hoje, uma espécie lacunar do princípio do
terceiro excluído. Pelo que não teremos adequado panegírico para início de prosa.
O que se pode é adiantar o que ninguém discutirá: morreu o poeta português de
maior fôlego e mergulho mais fundo. Morreu, em suma, o maior nadador da literatura
em língua portuguesa até hoje conhecida. Se não foi este o «Super-Camões», não
foi nenhum.
Camões e Herberto são aliás muito mais próximos do que possa parecer à vista desatenta – à vista atenta, o poeta mais afim que temos do segundo é o primeiro, e o mais afim que temos do primeiro é, salvo talvez Bocage, o segundo. Camões cantava no séc.XVI, devendo isso explicar o que por vezes nos parece, quase quinhentos anos depois, uma certa superficialidade, um certo defeito de fundo: era o maneirismo, era a herança então recente dos trovadores, era além disso e por todo um quadro que não é o nosso (este, começa apenas com o Romantismo e altera por completo as «regras» do jogo). Herberto, só aparentemente ao contrário, encanta-nos pela “fundura nas palavras”, pelo verbo genesíaco, primordial, demiúrgico, forjado directo nas profundas do mundo e independente, até há pouco, das suas pequenas circunstâncias. À melancolia no tempo sucede o que a revolve e depois a decanta, o que além de pessoal é um novo estado poético. Mas, de resto, atente-se no percurso – poético, afora o pessoal – tão semelhante, do “cantar de amor tão docemente” aos desconcerto e espanto do mundo e da vida (“Minha cabeça estremece com todo o esquecimento” é capaz aí de ser o mais camoniano texto de Herberto) postos em verso, e sobretudo na mesma pulsão órfica: não só a que é transmudada no canto, como mais ainda a que lhe subjaz e a sobrenada: a que não se importaria de descer aos infernos porque eles ficam no mundo, são do próprio mundo, e se pode chamar satânica, melhor do que demoníaca, porque não sai nem quer sair do mundo em falta, alimentando-se vampírica dessa falta. O âmbito poético que só Camões e Herberto genuinamente partilham na literatura portuguesa é esse super-depressivo, tão meta-acediante quão anti-metafísico (académicos e críticos compatriotas, sempre a leste, passados “da puta da mona”, continuam a falar de metafísica acerca desta poesia: agora, ainda vá, que o homem ao menos morreu). Antero (em fase tardia, e de facto depressiva), Pascoaes (à cabeça de todos) e Pessoa (mais inócuo) nunca chegaram sequer a andar propriamente por cá. Camões e Herberto nunca de cá saíram.
Camões e Herberto são aliás muito mais próximos do que possa parecer à vista desatenta – à vista atenta, o poeta mais afim que temos do segundo é o primeiro, e o mais afim que temos do primeiro é, salvo talvez Bocage, o segundo. Camões cantava no séc.XVI, devendo isso explicar o que por vezes nos parece, quase quinhentos anos depois, uma certa superficialidade, um certo defeito de fundo: era o maneirismo, era a herança então recente dos trovadores, era além disso e por todo um quadro que não é o nosso (este, começa apenas com o Romantismo e altera por completo as «regras» do jogo). Herberto, só aparentemente ao contrário, encanta-nos pela “fundura nas palavras”, pelo verbo genesíaco, primordial, demiúrgico, forjado directo nas profundas do mundo e independente, até há pouco, das suas pequenas circunstâncias. À melancolia no tempo sucede o que a revolve e depois a decanta, o que além de pessoal é um novo estado poético. Mas, de resto, atente-se no percurso – poético, afora o pessoal – tão semelhante, do “cantar de amor tão docemente” aos desconcerto e espanto do mundo e da vida (“Minha cabeça estremece com todo o esquecimento” é capaz aí de ser o mais camoniano texto de Herberto) postos em verso, e sobretudo na mesma pulsão órfica: não só a que é transmudada no canto, como mais ainda a que lhe subjaz e a sobrenada: a que não se importaria de descer aos infernos porque eles ficam no mundo, são do próprio mundo, e se pode chamar satânica, melhor do que demoníaca, porque não sai nem quer sair do mundo em falta, alimentando-se vampírica dessa falta. O âmbito poético que só Camões e Herberto genuinamente partilham na literatura portuguesa é esse super-depressivo, tão meta-acediante quão anti-metafísico (académicos e críticos compatriotas, sempre a leste, passados “da puta da mona”, continuam a falar de metafísica acerca desta poesia: agora, ainda vá, que o homem ao menos morreu). Antero (em fase tardia, e de facto depressiva), Pascoaes (à cabeça de todos) e Pessoa (mais inócuo) nunca chegaram sequer a andar propriamente por cá. Camões e Herberto nunca de cá saíram.
O verbo de Herberto é assim o
que herda o fogo prometeico, cuja linhagem começa já bastante soberana em
Heraclito (outro H que gostava do epíteto de «obscuro», aposto ainda pelos
contemporâneos), chega ao apogeu com mais um H, esse monstruoso Hölderlin
tardio, e tem como descendente recente o nosso poeta. É o verbo do “sangue” e
do “ouro” bebidos em Rimbaud (que dedicou à letra H uma das estonteantes Iluminações, não cabendo porém de modo
tão evidente nesta estirpe, apesar de ser dela o outro grande apogeu; pareceria,
em todo o caso e em quase tudo, o mais directo antepassado, no sentido referencial,
de Herberto, se porventura os semi-deuses deixassem descendência), da “dança”, dos
“elementos”, da “loucura”, da “luz” e das “trevas”, da “morte” linguisticamente
amestrada. O verbo que ou nega Deus, por o descrer, ou o renega e lhe pretende
o fogo para os mortais. O fogo, o amor e a morte, e chamemos aqui outra vez os
senhores principais do Romantismo Alemão, a quem devemos a percepção moderna
disto.
Mas se descrever o verbo é
fácil, e daí a profusão de imitadores, como lhe descrever a toada? Como definir
o tom, a cadência, a pulsação, o ritmo, a música, a desmesurada força desta
poesia? Reconhecer é uma coisa,
identificar é outra. A magia é para os magos. Os aprendizes de feiticeiro podem
dar-se por felizes só de lhe verem os efeitos. Brincar com o fogo, no caso, não
queimará o papel, mas podia.
Esta poesia é como um corpo
animal, em movimento permanente, circular, cada passo reatando outro passo,
cada ponta reatando outra ponta até à confusão, “cada imagem a cicatriz de
outra imagem”: palavras que ressoam nelas mesmas e nas outras porque a imagem
se repete em voltas contínuas (“o poema contínuo”, de facto e de direito),
obsessiva, sonâmbula. Já alguém lhe chamou “texto sonâmbulo”, o que também se
poderia fazer ao de Raul Brandão, relativo predecessor em prosa portuguesa de
Herberto, que não por acaso lhe pegou no Húmus
e o passou a verso. Mas, mais do que isso, ele soa ao próprio sono do tempo e
torna sonâmbulo o próprio leitor animal adormecido. Quem nunca o fez, pegue por
exemplo na estrofe inicial d’O Amor em
Visita ou na composição primeira de Última
Ciência, dois poemas de que já falaremos, ou, já agora, no período que
começa o Húmus de Brandão, e note que
logo deixará de sentir o chão, como os sonâmbulos.
Dois aspectos a assinalar a
este respeito são os seguintes. O primeiro, reparando que esse círculo termina
em Do Mundo, ao qual se segue a que
poderíamos designar «trilogia post-scriptum», cujo sentido está ainda muito por compreender,
a partir de A Faca não Corta o Fogo.
Com frequentes antecedentes esparsos nos motes e nos temas, não deixa de ser,
como um todo, exercício – amiúde, brilhante – de reflexão e de retrospecção: em
simultâneo, do homem e do poeta que envelhece: “acabou-se-me a língua bêbeda”.
É especialmente cedo para lhe determinar o extemporâneo significado no corpus herbertiano. Não erraremos muito,
todavia, se o situarmos, acima do maneio linguístico tão invocado, algures
entre a reflexão do ser-para-a-morte, a contemplação retrospectiva da própria
obra (palavra geralmente estúpida fora da construção civil, mas que neste poeta
faz, valha-nos Deus, todo o sentido) e a agora bastante perturbadora exploração
do fundo que liga a sexualidade à linguagem. Escrevi há muitos anos, em livro
ainda muito inédito: “Toda a linguagem nasce do desejo que abandona no sentido
da depuração. A vida inteira dos homens cabe neste paradoxo”. E o que Herberto
faz ao paradoxo é invertê-lo, bailando acima dele, trocando as voltas ao já
bastante escuro, e tenebrosamente aberto, espelho.
O segundo aspecto é para
defender a tese de dois grandes ciclos, sucessivos mas intrincados e
dificilmente discerníveis, dentro desse círculo. Melhor do que ninguém, é o
próprio poeta que, involuntariamente ou não, os nomeia, quando fala algures na
troca de operador da grande poesia moderna: a «beleza» cede o lugar à
«energia». Pode que sem querer, mas está a falar dele mesmo como de ninguém mais. Os primeiros livros são os da beleza (convulsa, conforme a pretendia
Breton, para a não ver perecer) que nos toma de assalto em poemas como o
citado: “Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra e seu arbusto de
sangue”, e depois pasmai. A seguir, nos intermédios, principalmente após o
primeiro período de «silêncio» (outra vez Rimbaud), os dois operadores vão já
trabalhando em conjunto, em progressiva metamorfose, mas o leitor
contemporâneo, animal por força desatento, não terá estado certo de a notar. Só
nesse penúltimo e enorme Última Ciência é
que a transformação, arrebatadora, se torna evidente. Sendo o último Do Mundo, ainda um grande livro, o ponto
de chegada, corolário natural: pura transmissão de energia, tal a vida e a
morte de todos os animais. Obtida enfim a alquimia, nada restava ao poeta, com
o destino no mundo cumprido. E seria ou o silêncio, que nunca conseguiu, ou
escrever o auto-testamento poético, que foi o que fez.
Só depois de morta entendemos bem
clara a importância de uma pessoa, próxima ou apenas relevante. Para não ir
buscar nomes menores, já era há muito leitor fiel, quando morreram, de gente da
têmpera de Cesariny ou de Gabriela Llansol. Não dei por nem um décimo do peso
de ausência destes dias, o que parece significativo.
Mas não parece é que já alguém
tenha dado conta da efectiva importância deste poeta. Ficará talvez para o
futuro e para os leitores vindouros, avantajados com a lucidez da distância que
não temos. Arrisco porém antecipar, mesmo num mundo virado do avesso, que
haverá dele memória, poderosa e incandescente, enquanto houver vestígio da
língua que escreveu. A mais encantatória jamais lida.