Ser português e querer evitar ruído, circo e geral histeria: semelhante conjunção parecerá talvez a quadratura do círculo, mas foi o que Herberto Helder (HH) passou a vida a tentar. Em vão. Chegado a velho, quando já quase o conseguira, viu a multidão ocupar-lhe à porta a tenda das “edições limitadas” montada pela imprensa e explorada pelas redes sociais. Depois de morto, antes mesmo do funeral, voltaram a montar-lha, um pouco mais discreta, agora no cemitério. “Mas isto não era dispensável, em nome do bom gosto?”, pergunta aqui o pio leitor. Com certeza que era. A falta de gosto, porém, é o menos nesta história. Comparada à estupidez, mal se nota. Tudo é nisto tão fundamentalmente estúpido que até se torna difícil escolher por onde começar. Experimentemos pelo início.
Em 2008, catorze anos passados de naturalíssima retirada, que se chegou a supor definitiva, após Do Mundo, etapa final da obra fixada, HH publica A Faca não Corta o Fogo, ainda sob chancela da Assírio & Alvim – que, no entanto, fôra já apanhada nas malhas da Porto Editora. A tiragem, como era hábito, constou de 3000 exemplares, depressa esgotados. Regressado, este nada pródigo mas prodigioso poeta chegava enfim a uma tão tardia quão duvidosa consagração geral, e estava de repente na moda, mesmo entre quem nunca lhe lera até então um único livro. Começavam aqui os equívocos. E, depois, os protestos, mas ainda muito vagos: a Assírio era uma vaca justissimamente sagrada, a ninguém tão logo ocorrendo arguir-lhe “edições limitadas” em “estratégia comercial”. Pelo que a neófita lamentação se limitou à não reedição do volume, desconhecendo, porque neófita, que o poeta nunca reeditara nenhum de poesia própria (só os da traduzida, e os de prosa). Nada de novo debaixo do céu. São costume estes mal-entendidos entre os convertidos súbitos e a normal cronologia do mundo.
2013 foi ano de Servidões, políticas (ainda continuam) e poéticas. Cresce o clamor (ai as “edições limitadas”, ai os malandros, editores e autor e o que calhar), cresce a corrida às livrarias. O livro esgotou num ápice, embora a Porto Editora, mais ao comando das operações, deva ter convencido a Assírio a aumentar a tiragem, como de facto se anunciou: os 3000 exemplos terão passado quase ao dobro, 5000, algo, suponho, nunca ou raramente visto na editora lisboeta. Mais aumentasse, mais a imprensa a teria protestado “limitada”. No Público, António Guerreiro, confundido com os números, escreve os mesmos argumentos superiormente aduzidos por muita gente no superior Facebook : que assim, coitadinhos, os verdadeiros leitores – sabe-se como a malta mais iluminada é menos expedita nas coisas práticas da vida, como ir a uma livraria comprar um livro ou tão-só encomendá-lo por telefone – não podiam ler, vítimas desse terrível conluio entre pessoas que queriam vender e pessoas que queriam comprar. Autor, editores, livreiros correntes e alfarrabistas, tudo a mesma canalha especuladora (esta parte, aplicada aos dois primeiros, não me parece ter sequer percebido) e perversora das regras normais do mercado (também não percebi, mas fiquei bastante comovido com este afã de figuras de extremadas bandas partidárias ou proto-partidárias pelo zelo das “regras do mercado”; é bonito). Ser a especulação um conceito que se usa quando a oferta de um bem ou de um produto diminui, e não quando aumenta, talvez lhes tenha passado ao lado. Números, dados, «realidade», coisas que nos desmontem os preconceitos da ideologia, que chatice. Campo Pequeno.
Com 2014 chegam A Morte sem Mestre e o Apocalipse. A Porto Editora – cumprindo, segundo o editor, a vontade do poeta – pôs-se a jeito: chega-se à frente e publica o livro em nome próprio, «roubando-o» à Assírio, publicadora ininterrupta de HH desde o início dos anos 80. Era o que faltava, e para o que as bocas vinham afiando os caninos. Berra-se. Grita-se. Uiva-se. Espuma-se. Nas redes sociais, a raiva é, para variar, «viral». Na imprensa, idem, aspas, apesar de toscamente disfarçada. O mesmo António Guerreiro, corrigindo ao menos, meio ano depois, os números errados que avançara, sai agora a reclamar num texto («Herberto e os cálculos editoriais») que deveria abrir os compêndios do género: o pseudo-desconstrucionismo habitual, oco e inócuo, atinge aqui o máximo por cm² de disparate disfarçado de profundidade de pensamento. Receita da prosa, grosseria e ignorância (se este segundo ingrediente for só má-fé intelectual, o sabor fica igual ou pior ainda). Goza com o CD, parecendo ignorar que a Assírio também comerciara um, Os Poetas, com música de Rodrigo Leão e Gabriel Gomes, e para o qual convencera igualmente o próprio Herberto a declamar. Goza com a concepção gráfica, aliás, nada desengraçada, que ataca em considerações parvas, sugerindo a aposição de pêlos púbicos do autor para levar ao extremo a metonímia: elevação, em suma.
Entendamo-nos. Pode-se e talvez se deva, tendo o coração à esquerda (normalidade anatómica), lamentar e criticar a deglutição de uma editora tão significativa como a Assírio & Alvim por uma concentração editorial de tipo capitalista, temendo a descaracterização da casa em que Hermínio Monteiro acolheu vates como Herberto, Cesariny, Luiza e Al Berto, e recuperou Pascoaes, Pessoa, Sá-Carneiro, Almada, etc. Mas, primeiro, azar dos azares, não há uma só falha conhecida a apontar à Porto Editora no modo como geriu o affaire Herberto. Segundo, é um nadinha delirante pretender que fosse ela própria a querer vender menos do que pode, em estranhérrima “estratégia comercial”. Terceiro, regra geral: quando nos aparece um inimigo poderoso, o melhor, se nos não queremos juntar a ele, é prever a guerra e pensar como se poderá derrotá-lo, em vez de começar, à mera vista dele, a choraminguice de um antifrástico Guerreiro – que chega a criticar à editora portuense ter ela lançado o volume na Feira do Livro, para vender “directamente ao público” (!), sem dar hipótese às livrarias «independentes» de absorverem, por uma espécie de direito divino, os exemplares que quisessem (!-!-!). Santa paciência: uma livraria independente não é a que depende de apoios para tudo (até, pasme-se, das arguidas «dependentes»). Uma livraria – como uma editora – independente é aquela, enfim, como direi, vá lá, in-dependente? Haja, de facto, paciência.
Certa esquerda nunca percebeu nem perceberá que o capitalismo não se derrota por decreto. E que, enquanto perdura (oxalá não para sempre), não cabe ao Estado nem a ninguém apoiar todos os auto-proclamados editores, livreiros, músicos, artistas, escritores, poetas, actores e dançarinos «independentes». HH foi a lição viva disto, e é por conseguinte de especial mau gosto arvorá-lo em bandeira do contrário, a propósito da Assírio como do que seja. Não parecerá tanto o caso das editoras: a Assírio, já que dela se trata, foi comprada porque quis, não por absoluta necessidade; aceitou integrar a Porto Editora porque esta lhe propôs um negócio que considerou suficientemente vantajoso para alienar a sua, aqui, sim, independência; simples, e nada justificador de lágrimas. Mas, no caso das livrarias genéricas, já se nota há muito que a coexistência entre grandes e pequenas se tornou impossível quando se teceram as redes capitalistas delas: mais as primeiras cresçam, mais as segundas deixarão, não sendo talentosas, de respirar, só o podendo pausadamente tornar a fazer após a morte, se vier, das primeiras. Ser anti-capitalista e satisfazer-se com menos do que isto é como esperar viver de esmolas ou arrumar carros – dos outros, claro.
Morreu o poeta há um mês, cerca de meio ano depois de esta balbúrdia* acalmar, e não vale a pena, por elementar pudor, tecer sobre isso quaisquer considerações especulativas. Vale é sublinhar como até nos insossos necrológios que a imprensa lhe dedicou durante uns dias – de Clara Ferreira Alves, Inês Pedrosa e inevitabilidades afins, freiras Tomásias louvando nele o que nunca fizeram: evitar os paços e a Corte – o tema das “edições limitadas” voltou à baila. Minhas senhoras, edições limitadas são todas; que se saiba, ainda ninguém edita até ao Infinito, tipo Deus. E é de espantar como em Portugal se chega, por exemplo, a crítico literário sem saber distinguir entre edição mais restrita e mais ampla, entre um pé de página e um pé de laranja-lima, entre a mancha da impressão e a da vergonha aparentemente ausente. Dirão que é acessório. Direi que é elementar, e não tão acessório assim: já teria servido, no mínimo, para impedir um episódio lembrado daqui a uns séculos como exemplo de estudo da invariável feição como um país quase invariavelmente estúpido trata os seus maiores.
* (Então e agora, impressiona que também criaturas por regra lúcidas nela caíssem como caíram. Pedro Mexia referira-se já às “edições pequenas” de cinco mil exemplares de poesia portuguesa; exiguidade que apenas se explicará caso a sociedade compatriota, antes subalimentada do sonho, se tenha lembrado num repente de a devorar, em paroxismo da invectiva nataliana. A colega cronista da «E» Ana Cristina Leonardo, denunciando embora dela a parvoíce, escreve agora, mal, que o nome de Herberto sai maculado desta história. Não sai, não. A única coisa que a estupidez macula a quem não é estúpido é mesmo a pachorra.)