Ser português e querer evitar ruído, circo e geral histeria: semelhante conjunção parecerá talvez a quadratura do círculo, mas foi o que Herberto Helder (HH) passou a vida a tentar. Em vão. Chegado a velho, quando já quase o conseguira, viu a multidão ocupar-lhe à porta a tenda das “edições limitadas” montada pela imprensa e explorada pelas redes sociais. Depois de morto, antes mesmo do funeral, voltaram a montar-lha, um pouco mais discreta, agora no cemitério. “Mas isto não era dispensável, em nome do bom gosto?”, pergunta aqui o pio leitor. Com certeza que era. A falta de gosto, porém, é o menos nesta história. Comparada à estupidez, mal se nota. Tudo é nisto tão fundamentalmente estúpido que até se torna difícil escolher por onde começar. Experimentemos pelo início.
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Entendamo-nos. Pode-se e talvez se deva, tendo o coração à esquerda (normalidade anatómica), lamentar e criticar a deglutição de uma editora tão significativa como a Assírio & Alvim por uma concentração editorial de tipo capitalista, temendo a descaracterização da casa em que Hermínio Monteiro acolheu vates como Herberto, Cesariny, Luiza e Al Berto, e recuperou Pascoaes, Pessoa, Sá-Carneiro, Almada, etc. Mas, primeiro, azar dos azares, não há uma só falha conhecida a apontar à Porto Editora no modo como geriu o affaire Herberto. Segundo, é um nadinha delirante pretender que fosse ela própria a querer vender menos do que pode, em estranhérrima “estratégia comercial”. Terceiro, regra geral: quando nos aparece um inimigo poderoso, o melhor, se nos não queremos juntar a ele, é prever a guerra e pensar como se poderá derrotá-lo, em vez de começar, à mera vista dele, a choraminguice de um antifrástico Guerreiro – que chega a criticar à editora portuense ter ela lançado o volume na Feira do Livro, para vender “directamente ao público” (!), sem dar hipótese às livrarias «independentes» de absorverem, por uma espécie de direito divino, os exemplares que quisessem (!-!-!). Santa paciência: uma livraria independente não é a que depende de apoios para tudo (até, pasme-se, das arguidas «dependentes»). Uma livraria – como uma editora – independente é aquela, enfim, como direi, vá lá, in-dependente? Haja, de facto, paciência.
Certa esquerda nunca percebeu nem perceberá que o capitalismo não se derrota por decreto. E que, enquanto perdura (oxalá não para sempre), não cabe ao Estado nem a ninguém apoiar todos os auto-proclamados editores, livreiros, músicos, artistas, escritores, poetas, actores e dançarinos «independentes». HH foi a lição viva disto, e é por conseguinte de especial mau gosto arvorá-lo em bandeira do contrário, a propósito da Assírio como do que seja. Não parecerá tanto o caso das editoras: a Assírio, já que dela se trata, foi comprada porque quis, não por absoluta necessidade; aceitou integrar a Porto Editora porque esta lhe propôs um negócio que considerou suficientemente vantajoso para alienar a sua, aqui, sim, independência; simples, e nada justificador de lágrimas. Mas, no caso das livrarias genéricas, já se nota há muito que a coexistência entre grandes e pequenas se tornou impossível quando se teceram as redes capitalistas delas: mais as primeiras cresçam, mais as segundas deixarão, não sendo talentosas, de respirar, só o podendo pausadamente tornar a fazer após a morte, se vier, das primeiras. Ser anti-capitalista e satisfazer-se com menos do que isto é como esperar viver de esmolas ou arrumar carros – dos outros, claro.
Morreu o poeta há um mês, cerca de meio ano depois de esta balbúrdia* acalmar, e não vale a pena, por elementar pudor, tecer sobre isso quaisquer considerações especulativas. Vale é sublinhar como até nos insossos necrológios que a imprensa lhe dedicou durante uns dias – de Clara Ferreira Alves, Inês Pedrosa e inevitabilidades afins, freiras Tomásias louvando nele o que nunca fizeram: evitar os paços e a Corte – o tema das “edições limitadas” voltou à baila. Minhas senhoras, edições limitadas são todas; que se saiba, ainda ninguém edita até ao Infinito, tipo Deus. E é de espantar como em Portugal se chega, por exemplo, a crítico literário sem saber distinguir entre edição mais restrita e mais ampla, entre um pé de página e um pé de laranja-lima, entre a mancha da impressão e a da vergonha aparentemente ausente. Dirão que é acessório. Direi que é elementar, e não tão acessório assim: já teria servido, no mínimo, para impedir um episódio lembrado daqui a uns séculos como exemplo de estudo da invariável feição como um país quase invariavelmente estúpido trata os seus maiores.
* (Então e agora, impressiona que também criaturas por regra lúcidas nela caíssem como caíram. Pedro Mexia referira-se já às “edições pequenas” de cinco mil exemplares de poesia portuguesa; exiguidade que apenas se explicará caso a sociedade compatriota, antes subalimentada do sonho, se tenha lembrado num repente de a devorar, em paroxismo da invectiva nataliana. A colega cronista da «E» Ana Cristina Leonardo, denunciando embora dela a parvoíce, escreve agora, mal, que o nome de Herberto sai maculado desta história. Não sai, não. A única coisa que a estupidez macula a quem não é estúpido é mesmo a pachorra.)