Vida Devota (IV)

Uma pastora meio-selvagem das Ardenas, que nunca vira outro espectáculo mais grato ao seu coração do que as cabras que guardava, foi um dia trazida das suas serranias a Paris, quando no boulevard passava, com a tricolor ao vento, um regimento em marcha. A pobre donzela fez-se branca como a cera, e só pôde murmurar, numa beatitude suprema:
- Jesus! tanto homem!
Eu sei que estou aqui fazendo o papel ridículo desta pastora, e balbuciando, com a boca aberta como se chegasse também das Ardenas:
Jesus! tanto livro!
Mas não é este grito, como o da pastora, natural?
O beduíno do deserto de Oeste, que, passando a Serrania Líbica, avista pela primeira vez, imenso, lento, enchendo um vale, o rio Nilo, exclama espantado:
- Alá! tanta água!
A água é a sua preocupação: todas as tristezas das areias que habita vêm da falta da água: mais que ninguém sente as maravilhas que a água produz; e no seu grito há uma tímida repreensão a Alá! "Tanta água aqui, e tão pouca lá de onde eu venho!..."
Assim eu venho... Mas o resto da comparação complete-a, antes, o leitor astuto.
 

(Eça de Queirós, Acerca de Livros, in Cartas de Inglaterra. Mas está bom de ver que tudo isto já foi mais assim.)